Por que me tornei Psicanalista?
Por que alguém escolhe atender pessoas que supostamente estão vivendo os seus piores dias? A resposta para esta pergunta não é simples. Algumas pessoas se tornam terapeutas porque gostam de controlar as outras, alguns entram na carreira em busca de status social, ou reconhecimento, validação externa. Existem ainda aquelas pessoas que acreditam que podem salvar o mundo (ou se salvar) através da terapia e, obviamente, há quem esteja buscando pura e simplesmente o dinheiro. Talvez, por causa da complexidade própria da profissão e todas as nuances que envolvem o tratamento psicanalítico, insistir nesta profissão com o foco apenas no financeiro, a longo prazo, se torne insustentável. Isso porque o fazer-se terapeuta exige do profissional muito mais do que disponibilidade de horário ou disposição para ouvir as maselas e peripécias dos analisandos. O processo de formação (e de transformação) de um terapeuta é ininterrupto, profundo e vertiginoso. Ninguém procura o terapeuta nas horas felizes, nos dias de comemoração ou para falar sobre como a vida tem sido generosa e a caminhada tranquila. Tal qual um médico ou enfermeiro, o terapeuta atende pessoass feridas que estão sangrando e que estão em busca de alguma forma de curativo, analgésico ou solução para os seus traumas mais profundos. Receber esta pessoa, abrir-se para ouví-la e sentir empatia pela sua dor é o início do processo terapêutico. Um processo que, inicialmente, nem o terapeuta, nem o analisando sabem como terminará. Ao longo deste processo conjunto, o terapeuta, tal qual um enfermeiro, pode se sujar de sangue e precisa ter “estomago” para ver as vísceras abertas e as fraturas expostas que o analisando traz consigo quando dá entrada na sala de atendimento. Dito desta forma, a profissão não parece mais tão glamorosa, nem os ganhos financeiros tão irrestíveis. Ainda mais se pensarmos que o terapeuta, tal qual qualquer outro profissional da saúde, não pode entrar na sala de trabalho sem antes esterilizar-se. Como evitar a contaminação daquele paciente/analisando que está sangrando e tão vulnerável a qualquer invasor oportunista? Como um cirurgião faz para entrar numa sala de operação e deixar lá fora os problemas do seu próprio cotidiano? A preocupação com uma reunião de pais na escola, as brigas conjugais da noite anterior, a morte de um ente querido. O terapeuta também tem uma vida pessoal fora da sala de atendimento. Formar-se terapeuta é um processo que invade, de forma indistinta, todas as áreas da vida do profissional. Os analisandos fantasiam um terapeuta que, muitas vezes, não existe. O terapeuta, no entanto, mesmo sabendo-se uma pessoa de carne, osso e emoção, não deve desfazer a imagem que os seus analisandos fazem dele. Pois, é justamente através desta imagem idealizada que muitos analisandos irão se sentir seguros para confiar seus segredos mais íntimos e seus medos mais profundos. Quando estamos doentes procuramos o hospital porque sabemos que lá estão as pessoas sádias que poderão me ajudar. Com o processo terapêutico é a mesma coisa, o terapeuta tem a obrigação de se manter são e forte para que o analisando possa despejar sobre ele todas as suas desgraças sem constrangimento. Paradoxalmente, este terapeuta não pode ser um “alecrim dourado”, uma pessoa ingênua ou inexperiente que nunca “apanhou” da vida. Para desenvolvermos a empatia, um princípio importante na psicanálise, é preciso conhecer a sua própria sombra, elaborar seus próprios traumas e fazer a própria análise, regularmente. Entre outras, esta é uma obrigação do profissional comprometido. Caso contrário, o terapeuta corre o risco de ver-se como alguém acima dos meros mortais e cair na falácia de que ele, um ser magnânimo, tem a missão de salvar o mundo. A relação terapeuta-analisando não pode descambar em processo messiânico.
Após esta breve introdução sobre o que é e o que não é o processo terapêutico, posso começar a discorrer sobre a minha biografia e sobre os caminhos que me trouxeram até aqui hoje. Talvez, a esta altura, já esteja bem evidente que as palavras e a linguagem tem lugar especial na minha trajetória. A minha primeira formação acadêmica foi em Letras, e não foi por acaso. Na Psicanálise aprendemos muito sobre os excessos e as faltas que nos movem na direção destes excessos. Nascido em uma família humilde e criado em um espaço onde os livros e as letras não tinham nenhuma importância, até Freud explicaria facilmente porque eu precisei fazer o curso de letras para aprender a expressar tudo aquilo que eu sentia e não conseguia dar vazão apropriadamente. A base da Psicanálise está na linguagem e as grandes obras da literatura foram de grande valia para Freud em umas das suas mais importantes teorias: o complexo de Édipo. De alguma forma intuítiva, no meu primeiro curso, eu já começava uma caminhada rumo ao entendimento da alma humana e dos desejos que nos guiam. Além da psicologia da educação e da psicologia do desenvolvimento humano, no curso de Letras pude desenvolver habilidades relacionais importantes que hoje são úteis no manejo dos analisandos.
Com o término do curso, veio a experiência em sala de aula. Uma experiência incrível da qual ninguém sai ileso. As dúvidas dos estudantes, seus medos, seus sonhos, suas relidades fora da sala de aula, ocupar uma posição de responsabilidade pela orientação e tomada de decisão num ambiente muitas vezes hostil e precário, serviu de uma forma imensurável para o meu desenvolvimento pessoal e profissional e para o terapeuta que eu sou hoje. Muitas vezes, quando estamos no “olho do furacão”, vivendo exatamente o momento em que a coisa acontece, não compreendemos com clareza a extensão e o peso, psicologicamente falando, que tais experiência acarretarão em nossas vidas futuramente. Mas, assim é o processo, complexo e dinâmico. Quando penso naqueles dias e olho em retrospectiva a partir dos conhecimentos em psicanálise que tenho hoje, consigo identificar claramente os momentos em que fui, inadvertidamente, mais terapeuta do que professor.
Mas este terapeuta-professor queria mais. Se sombra, ou se luz, a ambição voraz pelo conhecimento faz parte da minha personalidade e me move. Refutar esta característica intrínseca do meu ser seria, no mínimo, ingenuidade ou desfasatez. Por isso, movido pela ambição de saber mais e de me desenvolver no campo da escrita, principalmente na área da dramaturgia, mudei de cidade, mudei de Estado. Como diria o bom velhinho Nietzche, só não muda quem já morreu. Na capital paulista, minha cidade natal, ingressei, em 2015, na SP Escola de Teatro. Para minha surpresa, mais uma vez, estava sem saber pavimentando o meu caminho rumo à Psicanálise. Pois, o que é a dramaturgia senão o estudo do drama, da tragédia e da comédia humanos? E o que é a nossa vida senão uma tragicomédia, uma trama cheia de enredos e desfechos em que, na maioria das vezes, nos sentimos parte de uma grande novela. Na nossa história de vida somos todos protagonistas e tomamos decisões que, invariavelmente, impactam a trama de vida de todos que estão a nossa volta. Quem nunca ouviu a frase: na história do outro somos sempre o vilão? Enquanto cumprimos o nosso papel aqui nesta existência, dividimos “palco” com muitos outros “atores”, pessoas que já estavam aqui antes da nossa “estréia” nesta trama e também pessoas que entraram depois. Com algumas dessas pessoas antagonizamos, com outras nos tornamos aliados. O antagonista na minha história pode ser o meu pai, ou a minha mãe, um irmão, um chefe, alguém que de alguma forma se interpõe entre eu e o meu “final feliz”. A cultura popular está inundada de dramaturgia e em nossas vidas, às vezes, nos deparamos com cada plot twist que até parece que alguém superior, um Deus-roteirista, está escrevendo tudo pelo o que passamos. Estudar dramaturgia é estudar a alma humana, mais uma vez. Não tem como desenhar uma personagem sem entender o desejo, o que move aquele ser. Essa verdade é tão premente que alguns personagens fictícios que nunca existiram na vida real nos conquistam completamente e nos servem de exemplo na hora de fazermos escolhas. Quem não gostaria de ser admirado como um Robin Hood, o ladrão que corrigia as injustiças numa sociedade desigual? Ou ter a curiosidade e determinação da Alice, do romance Alice no País das Maravilhas? Todas estas personagens que permeiam a nossa imaginação e fisgam a nossa atenção conseguem tal proeza porque elas estão carregadas de humanidade. Eu consigo me relacionar com a personagem e pensar: eu faria (ou não faria) a mesma coisa no lugar dela. Letras, dramaturgia e psicanálise têm tudo a ver, mas eu precisei trilhar este caminho primeiro para entender as relações entre elas depois. O processo de formação é sempre assim. A gente nunca sabe aonde tudo vai dar enquanto está imerso no processo. É preciso confiar e seguir em frente mesmo quando nada parece fazer sentido. É preciso muita fé, no sentido estricto da palavra.
Eis que chegamos finalmente na minha encruzilhada - para parafrasear Dante e sua Divina Comédia - “me vi em uma floresta escura e lá me deparei com uma fera enorme bem no meio do meu caminho”. Esta imagem traduz um pouco sobre como a Psicanálise entrou na minha vida e como eu mergulhei na Psicanálise. Lembram de quando eu falei que todo terapeuta tem também a sua vida pessoal com seus problemas pessoais tal qual qualquer pessoa feita de carne, osso e emoção. Pois bem, as emoções nos servem como bússola e nos apontam, acertadamente, quando estamos distante do norte. A crise dos 30 e poucos anos, as relações interpessoais problemáticas, os novos desafios impostos por uma vida acelerada na megalópole me levaram, pela primeira vez - aos 30 e poucos anos! - a minha primeira experiência com tratamento psicanalítico. Ainda lembro daquela sensação de querer falar muito, muito e sem parar enquanto o psicanalista me olhava com uma cara de “copo d’água”, fazendo com que todos os meus problemas pairassem ali no meio da sala sem qualquer esperança de solução imediata. Eu, naquela época, pensava que o desfecho para os meus problemas estava no outro, no doutor; ele sim saberia o que fazer e me daria a “prescrição” do remédio que eu deveria tomar para aliviar as minhas tormentas, aparentemente, irressolúveis. Ledo engano! Hoje, após muita análise pessoal e após a minha formação em psicanálise juntamente com o tempo de experiência como psicanalista, percebo que não devemos pensar desta forma, por mais conveniente que ela possa parecer. Solucionar os problemas, caso eles possam ser solucionados, é sempre uma tarefa pessoal, particular e intransferível. Tentamos, muitas vezes, porque nos parece uma decisão fácil, colocar na conta do outro a culpa porque não estamos felizes ou porque os problemas só aumentam, mas, na psicanálise, entendemos que ninguém, além de nós tem responsabilidade pelo o que nos ocorre e pelas nossas escolhas. Esta é uma das máximas mais importantes que tiramos do tratamento psicanalítico e que levamos pra vida toda. Parar de reclamar dos outros e assumir a responsabilidade pelos caminhos que tomamos nos liberta da sensação de injustiça e inadequação que geralmente estão associados à ideia de vitimização. Com certeza, há situações que nos acontecem na vida que não são agradaveis e que podem nos deixar por muito tempo amargurados e tristes porque sentimos que não merecíamos tamanha injustiça. Ainda assim, entender que até mesmo estas situações desagradáveis, de alguma forma, foram por nós mesmos “escolhidas”, nos permite olhar de frente para a vida e tomar novas decisões mais acertadas e adequadas na direção daquilo que queremos de fato. Enquanto eu culpabilizo o outro pelas minhas escolhas ruins, eu não assumo que eu faço escolhas e, consequentemente, acredito que a minha vida é uma barco à deriva sendo carregado pela correnteza. Reverter este pensamento e tomar o controle pelas situações que me acontecem e os lugares onde me coloco reacende em nós a chama pela vontade de viver com autonomia. Ninguém quer se sentir arrastado e sem ação. A psicanálise nos ajuda neste processo de redescobrimento de nós mesmos e de tomada de força. Eu, após o tratamento com aquele psicanalista, um dia fui embora e não voltei mais. Entendi que a responsabilidade do que acontecia comigo era minha e fui fazer tudo o que eu queria e sabia que tinha forças para fazer. Entre elas, fui estudar mais sobre a psicanálise e me tornei psicanalista. Atualmente, sou estudante de psicologia e pretendo me aprofundar ainda mais no estudo da psique humana. Quando fazemos escolhas sem medo e com autoridade, descobrimos o poder imenso que temos para mudar o nosso mundo e a nossa vida.